28 de setembro de 2012

Preto


O vento adentrou pela janela aberta criando um pequeno caos. Folhas de pinturas vazias voaram, peças de argilas se estraçalharam, o cavalete tombou sobre o pote de tinta vermelha, pintando o chão outrora cinzento.

Os pelos dos braços se eriçaram. Continuei ali, imóvel, paralisado diante tanta beleza. Ela sorria. Um sorriso lindo. E naquele momento o universo inteiro girava ao seu redor, como a Terra ao redor do Sol. Embate entre beleza e solidão naquele sorriso retratado.

E agora, tento arranhar as nuvens. Grito. Levanto minhas mãos em oração. Choro. E vejo que todas as imagens que criei não passam um borrão preto. Uma mancha tatuada em qualquer lugar. Ainda choro. Tento, em vão, agarrar as cordas que me manipulam. Eu tento...

Do lado de fora algumas crianças brincam. Dão risadas. Estão rindo do quê? O cenho fechado. O corpo fechado. A alma fechada.

Tudo é um borrão.

De repente o mundo começa a girar. Tudo gira. Tudo conspira. Está girando rápido, mais rápido, uma espiral. Um redemoinho. Caio. Grito. Tento agarrar-me às cordas. 

O sol se põe. 

Chega a noite. 

Não há estrelas, não há lua. Não há nada. Só escuridão.

As mãos trêmulas tentam embalar os cacos, os restos... não há salvação. Não tem como consertar. Ela se foi.

Todo o amor se tornou mal. O mundo virou escuridão. Ah amor... ah amor mau que tatua de preto tudo que vejo, tudo que sou e tudo que serei. Amor mau. 

Mal de amor.

Eu sei que você não voltará. Sei que algum dia terá uma linda vida, que será uma estrela. Uma estrela no céu de alguém. Mas não no meu. Não no meu.

Tudo que vejo é um borrão. Uma pintura cinza, preta, fria. Tudo que sou não passa de ilusão.

Eu sou ilusão. Eu sou uma ilusão...


Ps: uma tentativa de releitura de Black, Pearl Jam.

13 de agosto de 2012

Espirais de Fumaça




Enquanto devaneio, a chuva lava as ruas da cidade que não para.
Tomo um gole de café quente. Forte e doce, do jeito que só eu sei fazer. Acendo um cigarro e deixo os dedos descansando sobre as teclas do computador.
Trago a fumaça e solto uma baforada de alcatrão, nicotina e outras substâncias prejudiciais à saúde. Sentado no sofá, pernas cruzadas, olhos perdidos no vazio, vejo a fumaça subir em pequenas espirais e se desfazer no percurso até se desmanchar no teto encardido do apartamento. 
Imagino a vida. 
Intensa no início e com o passar do tempo vai se esvaindo até se dissipar por completo. É a lei natural das coisas: nascemos, crescemos e por fim, morremos. Não adianta tentar pegar a fumaça! Ela escapa por entre os dedos.
 E nesse trajeto a gente aprende que as limitações nos tornam mais fortes e mais flexíveis. Que a falta de dinheiro nos ensina a pechinchar e eliminar o supérfluo. Que o cumprimento de um desconhecido nos faz sentir observado e importante. Que errar nos ensina a ter jogo de cintura. Que as pessoas preguiçosas são as mais criativas, elas inventam artifícios para ganhar tempo e facilitar a vida. Que quem muito reclama pouco produz. Fica preso às suas reclamações. Que engolir sapos não é tão ruim quando se têm objetivos. E devolver os sapos engolidos é bom demais!
Que chorar não lava a alma, dá rugas.
Que sentir raiva estraga o fígado e produz mau hálito.
Que um papo informal é muito melhor que uma conversa carrancuda e formal.
Que regras existem para serem quebradas, violadas, reinventadas...
Que um sorriso sincero é o mais belo gesto de amizade.
Que grandes amizades nascem em mesa de boteco.
Que um amor impossível nos faz enxergar a vida com outros olhos, nos motiva a encarar cada dia de forma única, nos permite observar os mínimos detalhes antes despercebidos pela nossa insensibilidade. Torna-nos mais vaidosos e preocupados com nossa aparência e bem-estar. Motiva-nos a ser sempre melhor, melhor em tudo, mais bonito, mais competente, mais atraente...
Até que encontremos um outro novo amor impossível...
E aí, começarmos tudo outra vez!
Que a vida é uma escola, e que seremos eternos alunos.
Que viver é ser, e fazer os outros felizes!
E isso é bom demais!
Lá fora, a chuva ainda cai, observo a fumaça do cigarro que está no fim... São apenas espirais. 
Espirais de fumaça.


10 de agosto de 2012

A Sinfonia do Caos


                                                                                     Hieronymus Bosch




O fedor era insuportável. Restos de comida espalhados pelas ruas imundas da periferia. O esgoto corria a céu aberto em pequenas espirais verdes e nojentas. Casebres de lona preta e lata, pau-a-pique e barro. Ruelas sem luz, chão de terra batida e encharcada de sangue. No ponto de ônibus um lençol branco manchado de vermelho cobria um corpo. Poderia ser um homem, uma mulher, uma criança, um velho. Poderia ser seu irmão, sua mãe, seu pai.
Mas era apenas um vulto sem vida.
Ivan Maciel, conhecido como Tijuana seguia sua rotina diária. Os ponteiros do relógio apontavam quatro da manhã. Ainda era noite e o frio de junho rompia a camada de napa da jaqueta desbotada, impregnando sua pele com um hálito gelado que ia até aos ossos.
Tapou o nariz e acelerou o passo.
— Infeliz! — disse ao passar pelo vulto.
Andou um quarteirão e apanhou o ônibus que levava à estação do metrô. Uma hora depois saltou no ponto de costume, desceu as escadas e se embrenhou por baixo da cidade. Sentiu-se como uma minhoca. Olhou para os lados e percebeu que não havia ninguém, pensou em pular a catraca. Economizaria o dinheiro do almoço. Olhou novamente para os lados, recuou dois passos. Comprou o bilhete duplo e foi embora.
Dentro do trem que ziguezagueava nos trilhos de aço, absorto em seus pensamentos refletiu sobre a armadilha que o destino preparara para aquele infeliz.
Quem era? Qual pecado causara sua morte? Rixa, disputa de poder, drogas, dívidas, luxúria, orgulho, mentira ou mesmo a preguiça?
Não obteve respostas.
Suas perguntas eram vagas demais, ele era vazio demais para entender a situação.
Tijuana era artista de rua. Um exímio e anônimo pintor. Tinha suas convicções e devaneios intelectuais. Talvez aquele complexo narcisista que todo artista tem. Adorava pintar abstrações, viajar no abstrato, nas suposições das coisas. Segundo ouvira dizer, nada é mais belo que o vazio. Detestava o renascentismo e dizia que o cubismo era apenas um meio-termo. Não gostava de fazer retratos, porém os fazia — aquela banalidade em tons pastéis e figuras patéticas com sorrisos plastificados era o que garantia seu sustento.
O trem parou na estação de costume. Preferiu subir os degraus — era avesso às escadas rolante, um luxo que não condizia à sua realidade. Lá em cima, deu de cara com a metrópole e o sol acariciou seu rosto com um calor gostoso. O barulho vindo dos quatro cantos da metrópole acariciava seus ouvidos. Era a sua música diária.
Era a sinfonia do caos.
Os arranha-céus pareciam monstros da Odisséia de Homero causando medo e vislumbre, encobrindo as nuvens e tapando o céu com suas sombras. Seu olfato já acostumara ao cheiro de ar reciclado e de enxofre despejados em torrentes. Era o perfume nauseabundo do progresso.
Tão diferente e tão igual...  Caos e luxo.  Ambiguidade? — pensou.
Uma cena perfeita. O cenário da miséria e do descaso. Da abundância e da globalização. Da seda e do saco. Do suportável e do insuportável.
Em sua mente um turbilhão de cores e sensações concretas. O embate entre ordem e desordem. Precisava mostrar aquilo. Precisava pintar.
Abriu a maleta, retirou os pincéis, a paleta e as tintas. Armou o cavalete sob a sombra de uma árvore. As duas mãos trabalhavam em ritmo frenético, alucinante. A sinfonia do caos penetrava em seu cérebro e como um maestro, regia seus movimentos, guiando suas mãos hábeis em traços perfeitos de tinta e fúria.
Era Hemingway escrevendo, abduzido por completo em seu mundo de devaneios. Era Freud tentando explicar sua psicanálise; Era Tarantino em Pulp Fiction,  Garrincha e seus dribles; Pelé e sua fome de gol; Era Roberto Drummond e Hilda Furacão; Era o grito da massa; O progresso do Brasil e a corrupção de Brasília. Era Milton Nascimento, Toquinho e Vinícius. Era o contraste de um povo e de uma cultura.
Um louco tentando fazer arte que ninguém entendia.
Os olhos faiscavam. A fome corroia o estômago. A miséria mastigava a alma. O amor era o ópio que entorpecia sua realidade.
Tijuana sentia a arte exalando do seu âmago cicatrizando suas mazelas e acalentando seus sonhos. Três horas e cinquenta e dois minutos, foi o tempo que pintou sem parar.
Estava finalizada.
Trapos e traços de cores. Mistura de sombra e luzes. Vermelho, preto, preto, vermelho, cinza, laranja, verde, amarelo, azul e branco.
Fogo e lama, água e pedra, ouro e merda, sangue e paz; caos, ordem e progresso.
Ele estava feliz.
Olhou orgulhoso, estufou o peito e sorriu. Um sorriso banguela.
A tela?
Era abstrata...

8 de agosto de 2012

Acaso lembra?

Imagem: Goya - Los Caprichos.


Lembra da última vez que sorriu...
Um sorriso de verdade?
Acaso lembra?


Lembra da última vez que disse a verdade...
A verdade propriamente dita?
Acaso lembra?


Lembra da última vez que amou...
Um amor que fez esquecer da realidade...
Acaso lembra?


Lembra da última vez que viu o sol nascer...
Sem antes olhar para o relógio...
E perceber que estava em cima da hora?
Acaso lembra?


Lembra da última vez observou um passarinho...
Livre,
Voando,
Entoando sua melodia de amor à vida?
Acaso lembra?


Lembra do último beijo apaixonado...
Daqueles que se beija com os olhos fechados...
Sentindo apenas o calor e frescor de um beijo de amor?
Acaso lembra?


Lembra da última vez que foi feliz?
Acaso lembra?

15 de outubro de 2011

O vento




Hoje pude sentir o vento.


Há tempos que não sentia o vento. Há tempos que ele, o vento, ficara lá do lado de fora, roçando outras peles, outros rostos, secando outras lágrimas.


Hoje pude sentir como é bom sentir o vento. Aquela brisa fresca que afaga, acaricia, como as mãos de quem amamos.

Estava preso. Minha prisão não tinha portas nem janelas. Não se podia ver o sol nem a lua e as estrelas. Não podia sentir o vento.


Minha prisão era eu mesmo.


Trancado, trancafiado dentro do meu próprio ego, dentro das minhas próprias dores e sofrimentos. Agrilhoado em lamentações, afogado em lágrimas que não sei bem de onde vêm.

O vento me trouxe de volta à vida. Mostrou-me que fora da prisão há um sol que brilha, uma noite com lua e estrelas e amantes, uma chuva fina que molha a terra fazendo-a germinar. O vento me mostrou que meu ego, egoísta, narcisista é apenas ego.


Nada mais.


Que minhas lágrimas serão apenas lágrimas, que minhas dores serão apenas dores. Simples. Não há como mudar.

Agora, liberto, sinto o vento. Vejo o vento. Não observo a vida passar.


Hoje, simplesmente, vivo a vida!

1 de setembro de 2011

Upa, cavalinho!





O homem velho não gostava de falar. Ficava o tempo todo mudo. Preferia os animais e seus cigarros enrolados a mão com precisão de máquina. Acho que ele conversava com a fumaça que subia em pequenas espirais, talvez, não sei, ela levasse consigo os segredos do velho homem.

Para ele, o dia se arrastava. Lentamente. Segundo a segundo que parecia contar. Eu via seus olhos, sem brilho, sem cor. Duas bolas de vidro trincadas. Eu via sua boca meio murcha, vincada e manchada pela nicotina de anos, se movimentar como se conversasse com alguém, como se quisesse, finalmente, falar. Mas não conseguia escutar o som de sua voz. Não. Não conseguia. O velho homem não gostava de falar.

Lembro-me de quando eu era criança. Gordinho, chorão e pirracento. Lembro-me do velho homem chegando em casa, trajando uniforme cinza com cheiro de suor, cigarro e de longe, uma fragrância de sabonete. Ele não era velho. Cabelos pretos, barba preta bem aparada, rosto sorridente e voz grave. Gritava meu nome. E eu corria para abraçá-lo. Sentia o gosto meio acre de suor, sentia o pelo da barba espetar meus lábios, mas não me importava. Esperava o dia inteiro por aquele momento. De repente ele ficava de quatro e eu montava em suas costas. Não fazia ideia do meu peso. E o homem magrelo suportava, sem reclamar.

— Upa, cavalinho! Upa, cavalinho! — era o que eu gritava entre gargalhadas.

O velho homem não gostava de falar. Ficava o dia inteiro enrolando seus cigarros. Abria o papelzinho, colocava uma medida de fumo, enrolava, e depois, com a língua umedecida, selava-os. Era sempre assim.

Fazia muito tempo que não ouvia sua voz. Eu me esquecera de como era a sua voz. Eu me esquecera de como era seu sorriso.


Eu me esquecera.

Assustei-me quando ele, o homem velho, tocou em meus ombros e disse:

— Por que não conversa mais comigo? — havia um brilho molhado em seus olhos. Não havia mais trincas. — Upa, cavalinho! Upa, cavalinho...

24 de agosto de 2011

O último beijo


O amor pode morrer? E como roubar o último suspiro?
A felicidade é como o vento: algumas vezes é brisa que afaga; noutras tormenta que mata.
Fui feliz um dia. E o vento acariciava meu rosto como as mãos macias de toda mulher. Se existe amor, aquilo que eu sentia era a sua mais pura síntese.

*****

Viagem planejada há mais de um ano: rota traçada e malas prontas. Tomaríamos vinho nas Serras Gaúchas, dançaríamos tango em Buenos Aires, esquiaríamos em Bariloche... Visualizava seus sorrisos de menina travessa em poses para fotografias com seus intermináveis biquinhos.

Aquela tensão pré-viagem me consumia. Queria que tudo fosse perfeito. Escolhi a dedo os cenários e o roteiro. Seria o filme das nossas vidas. E a cena final já estava escrita: nossos corpos nus, brilhando sob a chama da lareira, acalentados pelo fogo do vinho, eu faria o pedido:
— Aceita passar o resto de sua vida ao meu lado?
E ela já enrubescida e tomada pelos encantos de Baco, que descortinava sua habitual timidez, responderia sim com um beijo.

O Sol nem mesmo havia acordado e já estávamos na estrada. Ouvíamos nossa música favorita e os sorrisos pareciam fundidos num só, como nos álbuns de casamento.

Uma moldura de árvores que cresciam em linha reta, quase arranhando o firmamento, enfeitava nosso caminho. Eu a observava no banco do carona: boca e olhos semicerrados esboçavam um sorriso, mostrando a tênue linha que separa realidade e sonhos. Meu Deus, como era linda!

Não tínhamos ido muito longe, uma cortina de névoa subia pelo asfalto ofuscando a visão. Um caminhão estava parado no acostamento. Alguma pane, ou algum gigante poderoso e cruel o colocara ali, naquele ponto cego da rodovia. Quando vi aquele monstro de aço, busquei o pedal do freio, senti que não conseguiria parar, então desviei bruscamente para a esquerda...
Nem mil anos apagará de minha memória o barulho daquela madrugada. Os pneus cantando uma música fúnebre, os vidros estourando, rasgando minha carne, o carro girando, girando... Não sentia dor, só medo e pavor.
O grito doloroso que ouvi antes de tudo apagar, matou o que restara de mim.

Quando acordei o mundo estava de cabeça para baixo, pessoas por todos os lados. Luzes vermelhas piscavam, vozes engroladas balbuciavam coisas ininteligíveis. Só havia vultos distorcidos em minha frente. Imagens borradas. Algo quente e viscoso escorria por entre meus olhos, fundindo-se às lágrimas inconscientes que desciam pela minha face lívida e horrorizada.

Mas de algum modo encontrei meu amor naquela manhã...

Um pouco à frente, pude vê-la. Arrastei-me por alguns metros, sem me importar com o aço retorcido dilacerando meu corpo. Ela estava deitada sobre o tapete verde de relva encharcada de sangue. Ergui sua cabeça e seus olhos encontram os meus. Seu rosto emitia uma sensação indescritível de paz, com um sorriso no canto dos lábios, balbuciou:
— Abrace-me querido, apenas por um instante...

Minhas mãos trêmulas e titubeantes ganharam forças que não consigo explicar. Aninhei-a em meus braços num abraço apertado, tentando em vão doar minha vida. Beijei-a como deve ser um beijo de amor: intenso e pausado, olhos fechados, respiração lenta. Podia sentir sua vida esvaindo...

Nosso último beijo.

O amor morreu e eu roubei seu último suspiro.

Conto baseado na letra Last Kiss de Pearl Jam.

27 de novembro de 2010

Passagem Proibida


Um adeus mudo como uma imagem refletida no espelho. Assim despediu-se da vida. Lábios retesados e alguns dentes amarelos à mostra formavam uma careta de dor e culpa.

Era inverno. O frio cortante rompia a camada de napa da jaqueta esfarrapada trespassando a pele, a carne, fazendo os ossos doerem. Tomou um gole de café para espantar o sono de uma noite maldormida. Apanhou a mochila, beijou a filha que dormia na serenidade infantil, encolhida sobre o estrado de madeira forrado com papelão e coberta por um pedaço de pano raso. O ursinho de pelúcia, sem os olhinhos e o nariz, agarrado ao corpo, era a única coisa quente que sentira naquela época do ano. Olhou para cima, a fuligem que impregnava o teto cheio de gretas formava uma espécie de pintura rupestre. Talvez, naquele momento, quisera ter tido uma sorte melhor: uma casa confortável, uma cama e um sofá, uma TV em cores, uma geladeira com um pinguim em cima e comida dentro. Queria ter aprendido a escrever seu nome e poder ajudar a filha nas lições escolares. Uma lágrima viscosa desceu lentamente pela face encardida. Suspirou e saiu.

A ruela de terra batida absorvia os dejetos da comunidade. Vira-latas, ratos, baratas e urubus rodeavam o córrego a céu aberto em busca de comida, de sobrevivência. Um lençol branco encobrindo um corpo no canto da rua apresentava manchas vermelhas e pretas. Ele balançou a cabeça. Mesmo acostumado àquela cena cotidiana, era difícil entender tanta violência.

Falta de caráter ou de sorte? — pensou.

Andou por meia hora até o ponto de ônibus que o levava até à estação do metrô. Quarenta minutos depois saltou pela porta de trás, se embrenhando por debaixo da cidade. Parou em frente à catraca. Pensou em pular, economizaria o dinheiro do almoço. Deu dois passos para trás, comprou o bilhete duplo e foi embora. Sentiu-se como uma minhoca serpenteando por baixo da terra.

O trânsito estava parado. Buzinas, gritos, exaltação. Balbúrdia. Caos.

Uma placa gritava em letras garrafais:

PASSAGEM PROIBIDA!

— Não tenho grana pra comprar... seja lá o que for! — resmungou, enquanto seguia seu caminho.

Ouviu gritos. Pessoas correndo. Alguns pulavam, outros se jogavam ao chão. As sirenes das viaturas policiais urravam e os estampidos de tiros zuniam. Tentou correr. Tentou pular...

Na altura do peito, sobre o coração, a carne queimava. Uma nuvem cinza caiu sobre as retinas.
Fecharam-se as cortinas da vida. Abriram-se as cortinas da morte. Sua última cena, seu último ato na tragédia da existência.

No jornal do dia seguinte, uma notícia de rodapé nas páginas policiais:

Bala perdida mata trabalhador da construção civil.

E ele só queria uma casa confortável...

11 de abril de 2010

Quarto de hotel


Ela caminhava de tal forma que seus passos mal tocavam o chão encharcado. Seu estado de torpor a impedia de visualizar o brilho viscoso que escorria pelas folhas marrons queimadas pelo sol de outrora. Zunidos martelavam em seus ouvidos, abafando o som nervoso dos bueiros que engoliam a densa enxurrada alaranjada.

Parou. Ajeitou o capuz preto sobre a densa cabeleira loira — que naquele momento tinha cor de cabelo de molhado. Com um movimento automático apanhou o crucifixo de ouro que pendia sobre o peito e enfiou a haste sob a unha limpando a pequena nódoa. Voltou a caminhar. Um filme passava quadro a quadro, misturando-se às imagens apressadas da metrópole, como em uma película de cinema mudo. E agora tudo era negro, cinza e vermelho. Alcatrão. Fumaça. Sangue. Zunido...

A porta estava escancarada. Dois corpos jaziam. Dentes brancos esboçando sorrisos de felicidade em meio à miséria. Um misto de vergonha, medo e... prazer. O fedor nauseabundo da morte rodopiava entre as paredes do hotel fundindo-se ao cheiro de lavanda barata e naftalina. Ela ainda conseguia visualizar a cena anterior: um homem magro sobre a cama desfeita. O lençol meio caído, meio esticado, indicava que ali houvera ação. Seu bigode ralo fazia as vezes de um filtro extra para a fumaça do cigarro que serpenteava das narinas e boca. O corpo suado recendia a sexo. Ao prazer libidinoso da carne.

Ela estava nua ao seu lado e sorria. Seus dedos finos tocavam a pele manchada do homem, fazendo-o se contorcer, talvez pelas cócegas do atrito, talvez pelo acúmulo de energia sexual, ou quem sabe, por algum capricho da anatomia humana. Estremeceu ao se lembrar dos momentos de êxtase e apertou as pernas. Deleitava-se naquele antro. Era feliz. Mas sentia remorso. Olhou para o espelho e percebeu que seu reflexo estava cortado por uma linha mofada. Passos apressados cortaram o corredor e se estacionaram junto à porta. Um barulho seco. Flagrante.

Um homem alto e gordo arfava. Suas mãos tremiam em grandes solavancos. Os olhos injetados de sangue davam-lhe ares de fera. Pronta para atacar. O indicador em riste apontava. Sinalizava. Em um átimo, o mesmo indicador flexionava o gatilho do revólver. Um tiro. Trovões raivosos estouravam do lado de fora e entravam pelas frestas das janelas. Sem gritos. Sem polvorosa.

Vestiu a roupa e saiu apressada. Não teve coragem de fitar o homem gordo que agora abraçava o corpo ensanguentado. Muito menos pôde ouvir suas palavras:

“Há uma certa vergonha em sermos felizes perante certas misérias” ... nossa felicidade era apenas uma máscara. Uma sombra. A sombra de uma mentira.

Outro estampido ecoou pelo quarto. Mas ela já estava longe, de volta ao convento.

15 de fevereiro de 2010

Não julgue o livro pela capa

Jogou a capa de chuva sobre o corpo. O imenso capuz preto encobria seu rosto bonito, escondendo os olhos verdes tristes. Ela poderia ter escolhido uma mais bonitinha, mais feminina. Mas não. Não queria compactuar da mesma moda das metidinhas do condomínio. Seu estilo era aquele: meio despachado, meio intelectual. Metade mulher, metade menina. Metade borboleta, metade fera. Simplesmente ela.

Divertia-se com o barulho dos passos pesados espalhando a água empoçada. Meia hora depois o sol espalhava seu calor gostoso sobre o céu de dezembro.
A aula de inglês estava maçante. Saiu sem pedir licença. Ansiava chegar ao seu lugar favorito: a sombra do grande ipê amarelo. A velha árvore era sua amiga, sua confidente. Tatuara em seu tronco suas iniciais e as daquele babaca metido a artista. Arrepiou-se ao lembrar que emoldurara as letras com um coração flechado. Quanta falta de criatividade! Agora, sob sua copa frondosa ela observa o buraco escuro no tronco da velha amiga. Coisas que nos arrependemos com o tempo.

Eu não aguentava mais aquele desfile de egos. Egocêntricos ignorantes. Afrouxei a gravata que me estrangulava. Estava de saco cheio de ar reciclado.
Sob o ipê amarelo, vi a silhueta de uma mulher com um livro na frente do rosto. Segurava-o com uma mão e a outra mexia nos cabelos em curtos intervalos. Ela estava impaciente, ansiosa ou descontente. Não sou adivinho, muito menos tenho bola de cristal. Li uma matéria numa dessas revistas femininas que as mulheres sempre mexem nos cabelos quando estão nervosas, impacientes ou querem muito alguma coisa. Mistérios do sexo feminino.

Observava-a de longe. Ria das intermináveis caretas, biquinhos e sorrisos fortuitos. Ela se divertia na leitura daquele livro. Que livro seria? Que história interessante era aquela que a deixava tão inquieta? Vampiros? Não. Ela não tinha cara de quem gostava de vampiros. Filosofia? Provavelmente também não. As ideias filosóficas são chatas demais para arrancar risinhos tão sinceros e lindos. Queria saber que diabos de livro era aquele. E o mais importante: que mulher era aquela.

Pulei de um banco para outro rodeando o ipê amarelo. A grama verde, os cisnes brancos e pretos nadando num balé desajeitado sobre as águas do lago artificial, pareciam um daqueles quadrinhos vendidos em dúzias e que enfeitam a maioria das casas. Lembrei-me da minha. Havia um daqueles decorando a parede da sala.

Tomei coragem. Coloquei o jornal debaixo do braço. Assustei-me com o barulho dos meus pés amassando a grama verdinha. Logo naquele maldito dia havia me esquecido dos óculos. Sou míope. Precisei chegar mais perto, tinha que ver o rosto que aguçou minha curiosidade e meus instintos masculinos. Precisava saber o título do livro que ela devorava com a mesma volúpia e desejo que se devora... deixa pra lá.

Retirei os sapatos, não queria atrapalhar sua concentração, muito menos chamar sua atenção. Caminhei pisando em ovos, sei que é clichê, mas é a melhor forma para descrever o esmero com o qual eu pisava. Estava perto, uns cinco ou seis passos. Num ato mecânico, como se estivesse espantando uma mosca enxerida, ela levantou o livro, cobrindo completamente o rosto...

Um giro de cento e oitenta graus, os mesmos passos esmerados fizeram o caminho de volta. Não olhei para trás.

Ela continuou sua leitura, deitada, sonhando e rindo. Tranquila sob a sombra fresca. Eu voltei para a Editora. Servia-me de consolo não saber o enredo daquela história. Não perdi meu tempo lendo o original de um escritor desconhecido. Julguei o livro pela capa, ou melhor, pela falta dela.